Sobre um Rio
pouca vista, paisagem escassa, é verdade, mas tenho conforto, e as coisas soam como vindas de mim
lembro das paradas anteriores
um banco de areia, numa curva
uma pedra muito dura, com alguma maciez no musgo
e antes, o primeiro galho, o primeiro lugar onde pude me levantar acima da linha d'água
no começo, respirar era a única agenda, alguma forma de escapar do sufocamento
meu mérito era o ar
depois, meus pulmões cheios não eram suficiente, queria meu corpo por inteiro, queria secar tudo que ainda vivia submerso, evaporar cada gota.
meu mérito seria o sol
nessa época ainda não percebia inteiramente os custos de uma esperança, muito menos os verdadeiros riscos de tentar
nas primeiras percepções de felicidade, deformadas em mim, tudo valiosamente frágil, um castelo de cartas e um ventilador
para responder à vontade, precisava me deixar levar, talvez submergir novamente, talvez afogar, enfim
do galho para a pedra, da pedra para a areia, o processo se repetiu, mas eu não
não me dispus as mesmas dores
gosto de pensar que cresci, que descobri a incrível capacidade de boiar, que entendi a dinâmica dos fluxos
não sei se afoguei alguém no frenesi pela superfície, e, sinceramente, não me acredito mais tão capaz, tão poderoso
as ondas me ensinaram
e deixei de me importar
agora tenho algumas plantas e algum conforto
estou seco há muito tempo, deixei o sol lidar com os resquícios do percurso
me cerquei de mim mesmo
e, no entanto, as águas escuras me chamam
escuto meu nome nas ondas
minha pele seca e o meu passado
entendemos, afinal, a beleza da umidade
2 Comments:
Nossa, Miguel. Diz que isso tudo vai ser um livro, sim?
Porque merece.
:)
não sei se vc já leu a "educação pela pedra" ou "rios sem discurso" do João cabral de mello neto.
é claro que o seu é melhor.
aliás, deve ser mesmo um livro.
merece.
;)
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