Vida Continuada

pq ela continua, independente

Nome: Miguel Young
Local: São Paulo, São Paulo, Brazil

30.1.07

Sobre a Coisa


existe essa Coisa
dentro de mim, eu acho
se não dentro de mim, em mim
mas minha, essa Coisa.

pois então, como Coisa, e não como nome, me assombra o sono e nega a idéia de que vale a pena.
(mistérios precisam aceitar a ausência de respostas, e a Coisa não assenta nesse papel)

muitos rostos foram delegados, um punhado de explicações, vc e vc, mas nada aderiu à superfície d'Ela, escorrendo, sempre, para essas calhas que me coletam, negras.
insidiosa, a Coisa seria parda, se eminência, tanto que agora não sei mais onde Ela começa e onde termino de me entender.

mas um dia,
desnuda a Coisa e aveludada Suas quinas,
encontro o nome disso tudo que me escapa,
me cego de vez com a verdade,
me retiro das paredes, muradas e ameias,
a vigilância abandonada,
para poder, enfim, nada ver.

Sobre Leveza e Ossos


minha caveira voa
ou meus olhos morrem, enquanto olham em frente, sempre em frente, enfrentando o vento cortante de frio e tempo
minha caveira sobrevoa
ou minha alma ancora, engancha no litoral da sua boca, flutuando ao sabor do vento que não me carrega
minha caveira, ah, minha caveira, vc afunda
ou meu folego se transforma, processando lodo e expirando enxofre, me trazendo a vida cinza-esverdeada

minha caveira voa longe e alto
mas não me leva, corpo pesado, para onde ela sorri

4.1.07

Sobre Drummond e Reconhecimento


Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

2.1.07

Sobre Auto-conhecimento


um dia, alguém muito importante me falou que não tinha mais orgulhos pessoais
isso me esquentou como um tapa

logo quem, logo eu, logo o orgulho
minha reconstrução toda feita em cima de minhas medalhas, e vc vem me dizer que não tem mais orgulhos pessoais, como se isso fosse uma grande evolução
diz que está bem, que é feliz, que nunca esteve tão em si, e que andar na ponta dos pés não é mais um hábito

me senti tão pequeno, tão infantil
logo quem, logo eu, logo a maturidade
minha vida galgada em minhas dores, meus diferenciais marcados pela idade forçada antes da hora

auto-conhecimento, coragem, aceitação, harmonia, fluidez
zazen

me fez invejoso, querendo tudo isso
tantos sentimentos espinhosos brotando em mim, quando tudo que eu queria era o perdão silencioso e um retorno que ficou impossível há muito tempo
me tornei amargo, mesmo que essa amargura tenha sido destilada em silêncio
era muita coisa em jogo, mais do que vc pode imaginar

logo quem, logo eu, logo com vc

isso passou
dos meus orgulhos, dentre todos que compõe meu caos pessoal, um dos maiores é a minha capacidade de aprender, principalmente quando dói
foi bom ouvir um não, foi bom que tenha doído, foi bom me sentir pequeno
isso é coisa rara, meus sistemas impedem esse tipo de auto-percepção
(sim, necessito constante evolução, felizmente)
e uma dose de realidade se faz necessária, principalmente quando todas as suas defesas estão esquecidas e seu coração está na mesa

morri naquela noite, meu cadáver ficou na mesa do café, minha alma acompanhou vc até sua casa, para desaparecer, logo depois, no seu passado
essa parte da história termina aqui, junto com minha morte naquele café

mas, como não poderia deixar de ser, aquilo que sou sobreviveu, e como sobrevivente, não soube outra coisa além de vagar até em casa, para a continuidade daquilo tudo que eu queria mudar quando me joguei, esperando suas mãos na vazio, mãos que nunca vieram (nem nunca poderiam ter vindo, hoje eu sei)

sobrevivi, sim
logo quem, logo eu, claro que sobrevivi
essa é minha especialidade, vc não sabia?
o que era amargura esfriou numa dor mais branda, num aprendizado importante, mais um bloco nessa construção torta

vc ainda é muito importante, tenho a impressão que isso nunca vai mudar
me pergunto o que faria se te esbarrasse numa festa
acho que sentiria vergonha,
vergonha de minhas esperanças e tentativas, vergonha de ter acreditado que ainda valia a pena, que o esforço era válido, mesmo com tantos anos corroendo as lembranças do que foi bom
(sim, vergonha, eu sou um ser de orgulhos, não se esqueça)
talvez não falasse com vc, talvez pensasse que tudo que eu tenho pra te oferecer não importa mais, que fiquei muito para trás em minha pequenez de alma, em minhas metas tão terrenas
ou, talvez não, talvez conversássemos pacificamente, e eu poderia te contar como foi importante morrer naquele café, como foi longo o caminho que eu percorro, e como tenho um enorme carinho por tudo que passou, mesmo que sabendo que aquele sonho morreu junto de mim.

Sobre Unhas e Gratidão


a dor não vai passar
aprendi a crescer à sua volta

envolvo com raízes grossas esse pedregulho de dor que me mantém,
aceito as quinas, tão industrialmente retas,
e tiro energias de uma profundeza muita escura, muito distante,
para florescer, delicadamente, pequenos milagres de felicidade

a dor não vai passar,
não
saber não alivia

acreditei, um dia, que a solução seria abrir os olhos e ver, e em vendo, dissolver, devolver tudo para suas devidas proporções, alargar definitivamente o fio da navalha
minha ingenuidade

meu resto de ignorância sente fome por sua parte perdida
sonhos virginais de mocinhas casadoiras, em suas sacadas abertas para a vida
a esperança fácil de quem não sabe nada além do próprio quinhão

pois então, abri meus olhos, e vi
durante algum tempo embasbacado pela imensidão daquilo, as formas, as cores impossíveis, a coerência de tudo
pela primeira vez fiz sentido
e, ah, como foi bom, como foi esclarecedor, como foi um alívio
eu ainda acreditava no poder do saber, tive a carga retirada dos meus ombros
mas o peso, esse não diminuiu

a dor não vai passar
a vida não fica mais fácil
as sombras só se aprofundam

aos problemas antigos, juntei os novos, numa orquestração de pensamentos nunca prevista, para entender que não, a dor não vai passar
esse não é o caminho, o caminho da não-dor
nunca poderia ser assim, essa não é a minha paz

a dor não vai passar
não
não mesmo
ja aceitei isso

tudo aceitei
toda a dor, todo o sofrimento, todos os sonhos esmagados, todos os gritos sufocados, todos os socos incapazes, todas as revoltas capituladas, todas as fraquezas, todos os defeitos, todos os erros, tudo
em tudo me aceito
em tudo reconheço importância, todos os sonhos de velocidade e chão, todos os anseios de silêncio, toda covardia, toda dúvida, toda incapacidade
em tudo me reconheço e me aceito
sinto amor por cada parte

a dor não vai passar
minhas unhas quebradas de tanto cavar são a garantia disso
mas ainda assim,
mesmo que com a cara lavada de dor,
eu amo
sorrio
e agradeço