Sobre Segredos e Chão
muitos, de muitas pontas.
são muitos os fatos, me populando, sendo legião.
são muitas as quinas, muitas as câimbras, muito me faço torto, porque os encaixes são poucos e o desejo, imperioso.
são tantos, esses segredos, que acabo sozinho, rei do reino, penando por campos, negando a água, negando o sol, negando o pasto e o sal.
Dessa minha arena pública, desses meus enigmas partilhados, dessa face que mostro,
ninguém percebe,
ninguém entende,
ninguém sabe
da vida transfigurada em chumbo
das profundezas, plúmbeas, sufocantes de cinza
estruturada para a continuidade, sem espaço para o vôo
permaneço preso ao chão, fazendo-me ancora de sonhos
como sempre foi, agrilhoado no que nunca deixará de ser
chumbado na cantinela do dia a dia
dervixe estático
acumulando tensão
de chumbo me fiz
de chumbo me cubro
na densidade, sou
e ainda assim surpreendo, sou causa de estranheza
olham torto, não entendem, não concedem a possibilidade;
alguém abriu mão de ser feliz.
mas acontece
abri mão, desviei os olhos da meta
essa universalidade não é minha
não sei absorver
é uma vida peculiar, por assim dizer, uma vida sólida
muitos apontariam para dizer; "Vida ruim! Vida de dor!"
mas eu, bem,
não colocaria dessa forma
existe algo de real, algo verdadeiro
algo que compensa todo resto
algo que não existe na realidade dos sorrisos e pequenas conquistas
algo que não existe nas pequenas metas, nas pequenas satisfações
é uma realidade dura, para poucas disposições
minguados os que tentam, raros os que conseguem
mas ainda assim, insisto
a felicidade, afinal, apesar de boa meta, justificável, sensata, não carrega em si nada que contradiga o óbvio, nada que sugira uma rota de fuga, nada que permita o fim da samsara
é aceita, é partilhada, é parte da pasteurização
não encaixa, romântica que é, na placa de petri em que vivo cada dia
abri mão, sim, da felicidade
surpreendentemente, ela acontece
por mais que alienígena
por mais que renegada
surpreendentemente, a vida se apresenta
nas ofertas colocadas, nas opções sugeridas, na idéia e na hipótese, a vida me surpreende
ela se impõe
mostrando a face que agrada
girando mais uma vez a roda
coloca em mim as justificativas para tentar
e aceito, aceito a impressão, aceito a dor de querer e pensar que é possível
surpreendentemente
essa coragem
essa idéia
que vai decantando em mim
se transforma, grão a grão, no chão do que sou
para que um dia, enfim ereto, enfim de pé, sem apoios ou escoras, possa absorver, totalmente, o horizonte que sempre me pertenceu.
Até lá, sigo cinza, sigo dizendo não.